Integrante dos Racionais MC’s e referência incontestável na cena hip hop brasileira, KL Jay recebeu a reportagem da Folha de S.Paulo em seu apartamento no emblemático Edifício Copan, no centro da capital paulista. A conversa ocorreu em agosto de 2023, quando o hip hop mundial celebrava 50 anos de existência – um marco histórico que remonta à festa pioneira organizada por DJ Kool Herc e Cindy Campbell no Bronx, Nova York, em 11 de agosto de 1973.
Na entrevista, KL Jay fez uma verdadeira viagem no tempo, revisitando os primórdios do movimento no Brasil e a forma como a discotecagem desempenhou um papel fundamental na evolução do rap. Ele destacou a influência de grandes nomes como Grandmaster Flash, cujas técnicas de mixagem e manipulação de vinis redefiniram o que era possível no mundo da música. “O que Grandmaster Flash fez foi genial. Ele não só criou uma nova forma de tocar música, mas abriu caminho para o nascimento de uma cultura”, disse o DJ.
As raízes do hip hop no Brasil
KL Jay relembra o impacto da chegada do hip hop no Brasil, especialmente nas periferias de São Paulo, no início dos anos 1980. A cena começou a ganhar corpo em festas organizadas em espaços comunitários e clubes da cidade, onde DJs e MCs davam seus primeiros passos. “Era um tempo de descobertas. A gente ouvia os discos que chegavam dos Estados Unidos e tentava reproduzir aquilo à nossa maneira. Tudo era novo e experimental”, explica.
Entre as principais influências, ele menciona a força do funk, que ajudou a moldar a sonoridade inicial do hip hop no país. “O funk foi a ponte. Começamos ouvindo James Brown, Kool & The Gang e outros mestres. Mas, quando o rap chegou, percebemos que ali estava uma forma ainda mais poderosa de nos expressarmos.”
Foi nesse cenário que, em 1988, surgiram os Racionais MC’s, grupo que se tornaria um marco na música brasileira. “A gente queria falar das nossas vivências, das dificuldades que enfrentávamos na periferia. Nossa música sempre foi um instrumento de resistência e denúncia. Queríamos ser a voz de quem nunca foi ouvido”, afirma.
Discotecagem: a revolução no rap
A discotecagem, para KL Jay, foi o alicerce do hip hop. Ele descreve como a arte de manipular vinis, criando batidas e ritmos inéditos, se tornou a base do gênero. “A essência do hip hop é o DJ. Sem o DJ, não existiriam os beats para os MCs rimarem. É na pick-up que tudo começa.”
KL Jay também destaca a criatividade e a habilidade técnica necessárias para transformar a discotecagem em arte. “Na época, não existiam os recursos digitais que temos hoje. Tudo era feito na raça, no vinil. Você tinha que conhecer sua coleção de discos, saber onde estavam os melhores trechos e como conectá-los para criar algo único.”
Ele ressalta ainda o papel educativo e transformador da cultura hip hop. “Ser DJ me ensinou disciplina, foco e a importância de estudar. Não era só tocar música, era sobre criar algo que conectasse as pessoas, que contasse uma história.”
Críticas à indústria musical atual
Apesar do progresso do hip hop nas últimas décadas, KL Jay também aproveitou a entrevista para criticar o estado atual da indústria musical. Ele lamenta a perda de autenticidade e a predominância do interesse comercial em detrimento da mensagem. “Hoje, muita coisa é feita só para vender, sem se preocupar com o impacto cultural ou social. O hip hop nasceu como um movimento de resistência, mas em muitos casos, perdeu essa essência.”
Ainda assim, ele mantém a esperança de que novos artistas sigam os passos de pioneiros como os Racionais MC’s, trazendo reflexão e transformação por meio da música. “O hip hop ainda é uma ferramenta poderosa. Enquanto houver verdade nas letras e na batida, ele continuará vivo.”
Legado e celebração
KL Jay encerrou a conversa refletindo sobre o legado dos Racionais MC’s e do hip hop no Brasil. Para ele, a música que o grupo criou transcendeu gerações, servindo de inspiração para jovens que ainda hoje encontram na cultura hip hop um caminho de resistência e emancipação.
“A gente nunca imaginou que chegaria tão longe. Mas, ao mesmo tempo, sempre acreditamos no que fazíamos. O hip hop me deu tudo, e eu só quero retribuir. É sobre usar sua voz para mudar o mundo ao seu redor.”
Com a celebração dos 50 anos do hip hop, KL Jay reforça a importância de preservar a essência do movimento. “O hip hop é mais do que música; é atitude, é resistência, é arte. E enquanto houver DJs nas festas e MCs nos palcos, essa cultura nunca vai morrer.”